Processo de treino – A certeza da incerteza por Júlia Silva

Processo de treino – A certeza da incerteza por Júlia Silva

Na indústria do fitness, o aluno chega ao ginásio, em busca de satisfazer as suas necessidades. O profissional de exercício físico é visto como alguém que irá resolver os seus problemas, e oferecer a solução que tanto deseja. Mas será que o profissional tem sempre a solução? Será que ele tem todas as respostas? O ser humano tende de fugir à incerteza, a momentos que fazem sentir insegurança. As dúvidas assustam. Não ter todas as respostas que pretendemos poderá causar alguma frustração. No Fitness, o mesmo se passa. Procuramos estar num caminho onde sentimos conforto, em que temos as respostas definidas e que haja poucas dúvidas. Mas com isto, só poderemos cair em erro. Facilmente caímos na tendência de definir causas de modo a encontrar soluções fáceis, como se tudo fosse por algo que está “fraco” ou “encurtado”, em que a solução normalmente passa por “fortalecer y e alongar x”. Definimos “a” causa (quando o problema é multifatorial), de modo a definir “a” solução (quando muitas vezes nem a temos). Desta forma, teremos a vida facilitada, mas também estaremos situados numa mera ilusão. Por vezes, sentimos a enorme necessidade em procurar a receita. Algumas vezes, a própria ciência (infelizmente) segue um pouco desse caminho… Realizamos pesquisas de modo a definir exercícios “bons” ou “maus”, comparamos exercícios para perceber qual é o “melhor” ou “pior” e tentamos em estudos, determinar qual é a melhor amplitude de movimento. Com isto, só podemos chegar a conclusões completamente generalizadas.

“A ciência será sempre uma busca, jamais uma descoberta. É uma viagem, nunca uma chegada.”

(Karl Popper)

A ciência não é dogmática, jamais conseguirá dar “a” resposta. As pesquisas científicas não são receitas, por isso não devem ser replicadas aleatoriamente, a qualquer um. No mundo real, os outliers também contam. As pesquisas poderão até se ajustar a 99,9%, mas o meu aluno poderá representar este 0,1%, e é da minha responsabilidade fazer o melhor para este (e não para os 99,9%). Não estou a incentivar a negar a ciência, mas devemos olhar com um pensamento crítico a toda a informação que obtemos e questionar. Quando vejo pesquisas com este tipo de raciocínio, questiono sempre: para quem? Para quem será que este exercício é bom? Será que é bom para todos? E para quem é que este exercício será melhor? Será melhor para todos? E para quem é melhor esta amplitude? Será que é para todos?
Tal como as “guidelines” das entidades máximas, não devem ser respeitadas religiosamente e replicadas porque a “autoridade” recomenda. Estas poderão ter a sua importância, mas alerto apenas para o seguimento dessas recomendações sem sequer questionar. Porque além de serem generalizadas (baseadas em médias), por vezes carecem de suporte científico, mesmo sendo fornecidas por entidades ditas “Gold standard”.
É certo que o profissional poderá ter um conjunto de linhas orientadoras para a sua construção de exercício de forma a conseguir traçar um caminho seguro e eficiente. Mas há algo que deve refletido por todos: Não importa conhecer os resultados de todas as pesquisas científicas, se negligenciar a pesquisa mais importante: a pesquisa ao aluno!
Assim, as melhores linhas orientadoras não são do ACSM (ou de outra entidade qualquer). As melhores linhas orientadoras são fornecidas pelo aluno, aquele aluno específico.

“O cada corpo é um corpo” é do senso comum de todos, mas por incrível que pareça, é muitas vezes negligenciado no âmbito do treino, em que tentamos encaixar pessoas em padrões e normas que não passam de médias de estatísticas. Além disso, cada organismo possui diferentes níveis de tolerância, tanto sistémica ou local, ao estímulo-intensidade. É importante que esteja bem assente na mente de treinador que poderá haver questões estruturais e fisiológicas que caracterizam o indivíduo, que fazem parte dele, e que não temos controlo sobre tal. Mas temos o controlo absoluto de respeitar aquilo que ele tem, trabalhar com aquilo que ele tem e não danificar. É este o nosso dever, como treinadores. O treinador deve iniciar a jornada pela pesquisa ao aluno, sem a necessidade de quantificar ou qualificar algo. Não se trata de classificar como “bom” ou “mau” ou utilizar scores para aquilo que aluno tem disponível, mas sim de CONHECER o aluno, sem julgar, sem especular e sem diagnosticar …o foco está em aferir para construir um caminho de estimulação seguro e efetivo, que vá de encontro aos objetivos, necessidades e capacidades do aluno. Acima de tudo, aquele que constrói exercício, deverá ter como princípio moral e ético, perceber o que o corpo à sua frente tem de disponibilidade e tolerância, e respeitar os limites adjacentes, o resultado não poderá ser primordial ao respeito do corpo. O exercício é suposto ser o medicamento, jamais poderá causar algum mal. E não esqueçamos, sendo o corpo humano um sistema biológico complexo e dinâmico, a resposta fisiológica ao estímulo é altamente variável, não só de indivíduo para indivíduo, como no próprio indivíduo. Num momento poderá responder de uma forma a um estímulo e noutro momento, a resposta poderá ser completamente diferente. Nunca saberei com toda a certeza, a resposta que o meu aluno dará. Deste modo, a pesquisa ao aluno não poderá parar, deverá manter-se constante. Ao longo do tempo, terei cada vez mais linhas orientadoras (fornecidas pelo aluno) para a construção do exercício. Ora, como está o aluno naquele momento? Naquele preciso momento… está cansado ou não? Está stressado? Sente dor? Que tipo dor? onde? O que é capaz de tolerar? Cada momento do treino deve ser tido em conta: cada treino, cada exercício, cada série, cada repetição, cada contração muscular.

É o papel do treinador perceber se aquilo que o meu aluno está a receber e a concretizar vai de encontro com aquilo que é desejado e fazer os ajustes necessários, para que assim se esteja a aplicar o melhor cenário para aluno, para aquele momento (poderá não ser o melhor noutro momento e poderá ser o “pior” para outros). Devemos desprender da ideia de que existem exercícios bons ou maus, de que existem exercícios que todos devem fazer ou de que toda a gente deve agachar profundo ou fazer supino com a barra até ao peito. As respostas estarão sempre no aluno, naquele momento…
É comum no fitness estarmos atentos às novas tendências, procurarmos métodos milagrosos e metodologias inovadoras que darão os melhores resultados. No entanto, é primordial que no processo mental de qualquer treinador esteja claro que independentemente da metodologia ou se o treino é para hipertrofia, mobilidade ou cardio, e do instrumento a ser utilizado (máquina, pesos livres, ou o próprio peso corporal), existe sempre a presença de um corpo e da física a condicionar este, isto é, os instrumentos que utilizamos são meras ferramentas para fornecer resistência ao corpo. Qualquer exercício requere uma constante relação entre a física e o corpo, deste modo, os treinadores deverão rever-se como manipuladores da física, devendo estar conscientes da física (resistência) que está a ser imposta num determinado corpo, pois esta irá condicionar todos os processos fisiológicos e neurofisiológicos que servirão para alcançar o objetivo primordial, a adaptação fisiológica positiva. Cabe então ao treinador a “simples”, humilde e principal função deste processo, de conhecer o corpo e de manipular a física-resistência, constantemente, de forma ajustada a este, ou seja, pesquisar-construir-ajustar.

“Não é a metodologia que dita a adaptação, mas sim a resposta do corpo ao verdadeiro estímulo – a resistência – que muitas vezes tem o nome de crossfit, velocity based training, treino funcional ou pilates e alongamentos”

(Nuno Pinho)

Não raras as vezes o nosso ego é capaz de nos cegar sobre a realidade, caímos no erro de achar que o exercício é a cura de todos os males, que temos a solução para todos os problemas que envolvem o corpo humano. Há que adotar uma abordagem de humildade, colocarmos de parte o nosso viés e reconhecer os limites da nossa atuação. Não teremos sempre a solução. Há que ter em consideração que existem múltiplos fatores quando se lida com pessoas e o corpo humano, que jamais podem ser descurados.

“Não tratamos, ajudamos a exteriorização…estimulando-a.
Acrescentamos, não castramos…no tratamento…”

(Nuno Pinho)

Creio que seja fundamental o treinador livrar-se da falsa sensação de conforto e segurança inerente das metodologias e de métodos promissores do fitness, desprendendo– se assim de ideologias e dogmas que só proporcionam uma ilusão de conhecimento. O treinador deverá embarcar nesta viagem incerta com o aluno, educando-o constantemente e atuando consoantes os pressupostos daquilo que o aluno tem, consegue, tolera.
O processo de treino é um autêntico jogo de labirinto, com várias possibilidades de escolha e diversos caminhos incertos, para alcançar o final desejado (adaptação fisiológica). Entrar nesse labirinto, sem regras e certezas é desafiante e exigente, mas faz parte do processo haver dúvidas… haverá sempre mais dúvidas que certezas. Tal como a vida, o processo de treino é um processo de incerteza, em que a única certeza é que haverá incerteza pelo caminho.

” Os seres humanos podem ansiar por certezas absolutas e aspirar a elas; podem pretender, como os adeptos de certas religiões, tê-las atingindo. Porém, a história da ciência – de longe a pretensão de conhecimento mais bem-sucedida acessível ao homem – ensina-nos que o máximo que podemos esperar são melhoramentos sucessivos da nossa compreensão, a aprendizagem com os nossos erros, uma abordagem assintótica do Universo, mas com a limitação de sabermos que a certeza absoluta nos escapará sempre. Ficaremos sempre enredados no erro. O máximo que podemos esperar é reduzir um pouco as barras de erros e aumentar o corpo de dados aos quais elas se aplicam”

(Carl Sagan)

Baseado no PROCESSO OPERACIONAL DE AFERIÇÃO E OPTIMIZAÇÃO DA QUALIDADE CONTRÁTIL (PAOQC) – EXS EXERCISE SCHOOL

Master em Treino de Força Formadora EXS - Coordenadora Regional Açores