Perfil de Resistência e Prevenção de Lesões no Futebol por Ângelo Marques

Perfil de Resistência e Prevenção de Lesões no Futebol por Ângelo Marques

1 –  INTRODUÇÃO AO TEMA

De acordo com Neumann (2010), o perfil de resistência de um determinado exercício deve, na maior parte das vezes, ajustar-se à curva força-comprimento do músculo a ser estimulado.
No entanto, quando se trata de performance, esta relação mantém-se? Ou em determinadas situações, pode um perfil de resistência invertido ser o mais “ajustado”?

 

2 – DEFINIÇÃO DE CONCEITOS

Antes de nos debruçarmos acerca do tema, importa definir alguns conceitos-chave como: resistência; perfil de resistência; e curva força-comprimento.
Comecemos por explicar a diferença entre carga e resistência. A carga pode ser considerada uma força externa que é aplicada a uma determinada estrutura. Mas tal não é suficiente para que esta carga seja chamada de resistência, atento a que esta terá de se opor a uma determinada ação articular. Desta forma, entendemos que resistência nada mais é que uma força rotacional ou, por outras palavras, torque, não dependendo só da força externa (Carga) mas também da distância mais curta entre a linha de ação da força e o eixo de rotação (Braço de Momento).

Torque=Força*Braço de Momento

Assim, a resistência pode assumir diferentes valores ao longo de uma determinada ação articular. A esta variação chamamos de perfil de resistência (Purvis, T. Cit by EXS Exercise School, Manual do Módulo Performance da Certificação MTF, 2018).

Por sua vez, a curva força-comprimento traduz a quantidade de força que o músculo consegue produzir ao longo do seu comprimento. Tem a forma de um “U” invertido, visto que, com o encurtamento da fibra ocorre uma diminuição das ligações entre as proteínas contrácteis (actina e miosina) devido à sobreposição dos filamentos finos e, da mesma forma, se o músculo for alongado para além do seu comprimento em repouso, o número de pontes cruzadas vai também diminuindo, porque a sobreposição dos filamentos se reduz drasticamente – ver figura 1. (Mil-Homens, Vilhena de Mendonça, & Pezarat Correia, 2015)

Figura 1: Curva força-comprimento (Mil-Homens, Vilhena de Mendonça, & Pezarat Correia, 2015)

Face ao exposto, pode afirmar-se que um perfil de resistência está ajustado quando a variação da resistência coincide com a variação da força capaz de ser produzida pelo músculo ao longo do seu comprimento. Ou seja, quando promove uma resistência maior em comprimentos em que o tecido consegue produzir mais força e menor quando o tecido consegue produzir menos força.

Existem, no entanto, outros perfis de resistência ou curvas de força: ascendente, quando o torque aumenta ao longo da fase concêntrica; descendente, quando o torque diminui ao longo da fase concêntrica e ascendente-descendente quando o Torque primeiro aumenta e depois diminui* (Cardinale, Newton, & Nosaka, 2011). A estes perfis de resistência chamamos perfis de resistência invertidos.

*não mencionei uma possível curva de força descendente-ascendente por ser pouco comum.

 

3 – PERFIL INVERTIDO E SUA INFLUÊNCIA NA CURVA FORÇA-COMPRIMENTO

A questão reside em saber o que sucede à curva força-comprimento quando aplicamos um perfil de resistência invertido.

Henzog e colaboradores (1991) observaram que as características da curva força-comprimento de certos músculos da coxa variavam entre ciclistas e corredores, e que as diferenças refletiam a posição em que esses músculos se contraem habitualmente em cada gesto desportivo (Herzog, Guimarães, Anton, & Carter-Erdman, 1991).

A observação constatada parece demonstrar que a relação força-comprimento é sensível a determinados estímulos de treino, isto é, os perfis de resistência invertidos alteram a curva força-comprimento como resposta adaptativa do complexo musculotendinoso a um estímulo crónico de treino.

 

4 – LESÃO E PREVENÇÃO DE LESÕES NO FUTEBOL

Tomando como exemplo alguns estudos acerca das lesões frequentes em futebolistas, passamos a demonstrar como a variação da curva força-comprimento de um grupo muscular consoante o perfil de resistência adotado pode influenciar as referidas lesões.

No futebol, uma das lesões mais frequentes é a rotura muscular dos isquiotibiais, por ser uma modalidade que envolve movimentos de sprint (Orchard, Marsden, & Lord, 1997)(Brooks, Fuller, Kemp, & Reddin, 2006), aceleração, desaceleração, rápida mudança de direção e movimentos de salto (Devlin, 2000) (Drezner, 2003). Desta forma, a maior parte das lesões relacionadas com este grupo muscular ocorre em situações sem contacto físico (Woods, et al., 2004).

Estudos sugerem que a rotura muscular ocorre durante uma contração excêntrica e sucessiva mudança rápida para contração concêntrica dos isquiotibiais, sendo que a força de contração aumenta com o aumento da velocidade de contração (Hoskins & Pollard, 2005). A rutura ocorre na parte descendente da curva força-comprimento do complexo musculotendinoso (Garrett, Orava, & Jarvinen, 1990)

Face ao que antecede, é possível estabelecer uma correlação entre esta lesão tão frequente no futebol e o desenvolvimento de um perfil invertido nos gestos desportivos característicos desta modalidade.

Contudo, para uma melhor compreensão do papel desempenhado pelos isquiotibiais nos gestos desportivos acima mencionados, efetua-se uma enumeração objetiva das suas funções, a saber: a) Contraem excentricamente, desacelerando a extensão do joelho; b) Contraem quasi-isometricamente enquanto controlam a estabilização da articulação do joelho; c) Executam um contramovimento rápido de extensão para flexão do joelho; d) Desempenham um papel importante na extensão da anca (Zuluaga, et al., 1995). Todas estas funções são executadas simultaneamente ou numa sucessão rápida, provocando sobrecarga numa posição em que o músculo se encontra alongado.

Complementarmente aos estudos acima referidos, outros reportam que os principais fatores de risco associados à rotura dos isquiotibiais são: inserções e anatomia dos músculos (Woods, et al., 2004); falta de mobilidade ** (Gabbe, Finch, Bennell, & Wajswelner, 2005) (Burkett, 1970); instabilidade lombo-pélvica (Sherry & Best, 2004); fadiga (Worrell, 1994) (Croisier, 2004); aquecimento insuficiente (Worrell, 1994) (Dvorak, et al., 2000); força insuficiente dos isquiotibiais comparativamente ao quadricípite (Coombs & Garbutt, 2002) (Orchard J. , Marsden, Lord, & Garlick, 1997); e posição do pico torque nos isquiotibiais (Brockett, Morgan, & Proske, 2004).

De facto, a posição onde ocorre o pico torque é um fator fundamental a considerar. Portanto, a construção de um exercício onde o torque máximo se aproxima de uma posição onde o joelho se encontra mais perto da extensão, pode reduzir o risco de lesão, visto que altera a curva força-comprimento do músculo.

**Autores usam termo “flexibilidade”, mas é preferível empregar “mobilidade” uma vez que esta se remete a duas superfícies rígidas que se articulam entre si e não à capacidade de uma estrutura rígida dobrar sem se partir (Purvis, T. Cit by EXS Exercise School, Manual do Módulo Engage da Certificação MTF, 2018).

Além disso, a incorporação de exercícios construídos desta forma pode, ainda, reduzir a instabilidade dos sarcómeros durante a contração excêntrica e reduzir uma sobrecarga do isquiotibial na parte descendente da curva força-comprimento (Brockett, Morgan, & Proske, 2004).

 

5 – REFLEXÃO CRITICA

Desta forma, resta-nos refletir acerca do perfil de resistência a ser utilizado e suas respetivas vantagens, relacionando com o seu efeito na curva força-comprimento.

Propomos uma abordagem mútua em que são construídos exercícios com perfil de resistência ajustado, assim como, exercícios com uma curva de força descendente (perfil de resistência invertido).

Assim, considerando a análise feita e a informação recolhida nos tópicos anteriores, serão necessários estudos complementares para entender se a curva força-comprimento se altera como representamos na figura 2. Atento a que, a verde representamos a curva força-comprimento antes da aplicação do exercício proposto e a azul uma previsão da alteração da mesma curva após essa aplicação.

Figura 2: Curva força-comprimento antes e depois da aplicação crónica de um exercício com a curva de força descendente

 

É possível observar que o pico torque se move ligeiramente a favor de um maior alongamento e, portanto, como foi visto anteriormente, pode ser uma boa estratégia para a prevenção de lesões no futebol. Porém, é necessário comprovar se, de facto, esta variação acontece. Um exemplo de um exercício que se enquadra neste perfil é o “nordic curl” – ver figura 4. Estudos anteriores sugerem melhorias na integridade estrutural e desempenho dos isquiotibiais com treino excêntrico deste tipo mas, as evidências limitadas e a falta de ensaios relevantes, impedem a generalização para contextos clínicos (Hibbert, Grant, Moizumi, Cheong, & Beers, 2008).

Por sua vez, um perfil ajustado pode também ser uma estratégia interessante uma vez que, ao ajustar-se com a capacidade de produção de força do músculo, se torna uma opção mais segura. Desta forma, poderá ser um método eficaz para contrariar a força insuficiente dos isquiotibiais comparativamente ao quadricípite que, como vimos anteriormente é um dos principais fatores de risco na rotura dos isquiotibiais. Serão necessários estudos complementares para entender se a curva força-comprimento se altera como apresentamos na figura 3.

Figura 3: Curva força-comprimento antes e depois da aplicação crónica de um exercício com um perfil ajustado

 

Observamos que a posição do pico torque relativamente ao comprimento do tecido não se altera, mas aumentámos a capacidade do músculo produzir torque. Um bom exemplo de um exercício que se enquadra neste perfil é o “lying leg curl” – ver figura 5.

Assim, a chave para a prevenção de lesões no futebol poderá residir na utilização de exercícios cujo perfil de resistência seja ajustado em conjunto com a utilização de exercícios cuja curva de força seja descendente e assim invertido. Portanto, a utilização de um não dispensa a do outro e é uma abordagem mútua que poderá levar ao sucesso na prevenção de lesões no futebol.

Figura 4: Nordic Curl- imagem retirada de https://prohealthphysio.com.au/exercises/nordichamstring-curl/

Figura 5: Lying Leg Curl – imagem retirada de https://strengthtransformingcenter.nl/fitness-oefeningen/onderlichaam/lying-hamstring-curl/

 

 

6 – BIBLIOGRAFIA

Brockett, C., Morgan, D., & Proske, U. (2004). Predicting hamstring strain injury in elit athletes. Med Sci Sports Exerc, 36:379-87.

Brooks, J., Fuller, C., Kemp, S., & Reddin, D. (2006). Incidence, Risk, and Prevention of Hamstring Muscle Injuries in Professional Rugby Union. Am J Sport Med., 34: 1297-1306.

Burkett, L. (1970). Causative factors in hamstring strain. Med Sci Sports Exerc, 2:39-42.

Cardinale, M., Newton, R., & Nosaka, K. (2011). Sttrenght and Conditioning: Biological Principles and Practical Applications. Willey-Blaclwell.

Coombs, R., & Garbutt, G. (2002). Developments in the use of the hamstring/quadriceps ratio for the assessment of muscle balance. J Sport Sci, 1:56-62.

Croisier, J. (2004). Factors associated with recurrent hamstring injuries. Sports Med, 34:681-695.

Devlin, L. (2000). Rrecurrent posterior thight symptoms detrimental to performance in rugby union: predisposing factors. Sports med, 29:273-7.

Drezner, J. (2003). Pratical management: hamstring muscle injuries. Clin J Sport Med, 13:4-52.

Dvorak, J., Junge, A., Chomiak, J., Graf-baumann, T., Peterson, L., Rösch, D., & Hodgson, R. (2000). Risk factor analysis for injuries in football players possibilities for a prevention program. Am J Sport Med, 28(5 Suppl):S69-74.

Gabbe, B., Finch, C., Bennell, K., & Wajswelner, H. (2005). Risk factors for hamstring injuries in community level Australian football. Br J Sports Med, 39:106-110.

Garrett, W., Orava, S., & Jarvinen, M. (1990). Muscle strain injuries: clinical and basic aspects. Med Sci Sports Exerc, 22:436-43.

Herzog, W., Guimarães, A., Anton, M., & Carter-Erdman, K. (1991). Moment-length relations of rectus femoris muscles of speed skaters/cyclists and runners. Medicine and Science in Sports and Exercise, 1289-1296.

Hibbert, O., Grant, A., Moizumi, T., Cheong, K., & Beers, A. (2008). A systematic review of the effectiveness of eccentric strength training in the prevention of hamstring muscle strains in otherwise healthy individuals. N Am J Sports Phys Ther, 3(2): 67–81.

Hoskins, W., & Pollard, H. (2005). Hamstring injury management – part 2: Treatment. Man Ther, 10:180-190.

Mil-Homens, P., Vilhena de Mendonça, G., & Pezarat Correia, P. (2015). Treino da Força: Princípios Biológicos e Métodos de Treino. Volume 1. Cruz Quebrada: Edições FMH.

Neumann, D. A. (2010). Kinesiology of the musculoskeletal system. Mosby Elsevier.

Orchard, J., Marsden, J., & Lord, S. (1997). Preseason hamstring muscle weakness associated with hamstring muscle injury in Australian footballers. Am J Sport Med, 25:1-5.

Orchard, J., Marsden, J., Lord, S., & Garlick, D. (1997). Preseason hamstring muscle weakness associeted with hamstring muscle injury in Australian footballers. Aam J Sports, 25:1-5.

Sherry, M., & Best, T. (2004). A comparison of 2 rehabilitation programs in the treatment of acute hamstring strains. J Orthop Sports Phys Ther, 34(3): 116-25.

Woods, C., Hawkins, R., Maltby, S., Hulse, M., Thomas, A., & Hodson, A. (2004). The football asociation medical research programe: An audit of injuries in professional football – analysis of hamstring injuries. Br J Sports Med, 3:36-41.

Worrell, T. (17:33-45 de 1994). Factors associated with hamstring injuries: an approach to treatment and preventative measures. Br J Sports Med.

Zuluaga, M., Briggs, C., Carlisle, J., McDonal, V., McMeeken, J., & Nickson, W. (1995). Sports Physiotherapy: Applied Science and Practice. 1st ed. Melbourne: Churchill Livingstone.

 

Licenciado em Educação Física e Desporto; Instrutor BodyPump - Les Mills; Master em Treino de Força - Exs; Pós-graduado strength and conditioning.