Juntos somos mais fortes por Miguel Bernardes
O fitness é um setor que muito tem crescido nos últimos anos. Fruto desse crescimento, surgem os novos programas, produtos, metodologias e exercícios em que a procura da inovação e consequente retribuição financeira têm sido o principal propósito.
Numa área em que a procura de uma relação sustentada saúde-ciência tem sido uma preocupação constante dos que mais se interessam e dedicam ao tema, caminhos contrários ou inconsistentes, só nos colocam numa zona cinzenta e com rumo pouco definido.
A par desse crescimento está também a obsessão e o “culto do corpo” bem como a necessidade do bem-estar físico e psicológico. Nesse sentido, tendo o exercício físico um papel de extrema importância nestas ideologias, e sendo este um processo elaborado que requer aprendizagem, esforço, dedicação e resiliência, o ser humano tem como instinto procurar as soluções mais fáceis, menos duradoras e fatigantes.
Em pleno século XXI, nós, técnicos de exercício físico, que usamos a internet como divulgação do nosso trabalho online, tendemos a usar frases e slogans, que poderão induzir em erro os leitores/utilizadores que nos procuram para desenvolver o seu “fitness”.
Títulos como “o melhor exercício de pernas”, “o melhor exercício para perder barriga”, “como ganhar perna mais rapidamente”, “x exercícios para definir o peito”, “os melhores exercícios para definir os abdominais”, entre outros, são uma estratégia de marketing muito usual nos dias de hoje.
Perante estas informações, será importante refletirmos:
– Seremos todos iguais ao ponto de haver um exercício que “encaixe” em todos nós?
Apesar de todos os seres humanos, de forma natural, serem constituídos pelas mesmas “peças” (ossos, músculos, órgãos, etc.), essas mesmas “peças” poderão ser diferentes de individuo para individuo. Segundo Paul Grilley, “se a estrutura óssea das pessoas é diferente, então as suas articulações terão diferentes amplitudes de movimento”. Nesse sentido, aplicar as mesmas regras, normas, amplitudes de movimento, de um exercício e de forma generalizada, será negligenciar as particularidades interindividuais. Como consequência, teremos a proximidade da lesão, precisamente o oposto do que deveríamos procurar.
(Bone photos by Paul Grilley)
– Será a resposta ao exercício igual para todos?
Certamente, já todos passámos por uma situação de aula de grupo, onde o treino foi comum a todos, mas, mais uma vez, a resposta ao mesmo diverge de individuo para individuo. As sensações no pós treino também variam largamente. Dores musculares, dores articulares, fadiga geral, febre, ausência de dores, timing de dor, entre outros, são respostas ao treino com grande divergência entre os indivíduos.
Segundo Baumert P e col. (2016), embora algum dano muscular seja necessário para promover adaptações positivas no tecido, dano excessivo ou uma recuperação deficitária, poderão aumentar o risco de lesão. Estes riscos são mais evidentes na população idosa, uma vez que carecem de mais tempo de recuperação que indivíduos em idades mais jovens. Ainda assim, parece haver diferentes respostas interindividuais, decorrentes do dano muscular via exercício, em que o fator genético poderá ter um papel importante.
As perguntas continuam a surgir:
– Terá o nosso estilo de vida impacto neste processo?
Terá o nosso estilo de vida impacto neste processo? Teremos controlo motor na execução deste tipo de tarefas? Serão as adaptações iguais em todos nós?
Por consequência do contexto atual em que vivemos (isolamento e distanciamento social), a propaganda do exercício físico virtual assumiu ainda maiores dimensões. As aulas online para massas são cada vez mais frequentes. A fim de prestar um serviço realmente autêntico e seguro, caberá ao profissional refletir:
Estou a garantir a segurança dos utilizadores?
– Quem nos está a ver? Estará apto para fazer a minha aula? Qual o objetivo da minha aula? Estou a garantir a segurança dos utilizadores? Estarão as pessoas preparadas para estas tarefas? Talvez seja impossível ter a resposta para todas estas questões, mas então o que estamos a promover? Saúde? Bem-estar?
Embora acredite que a intenção da criação destas metodologias, protocolos, exercícios, seja a global “melhoria” da qualidade de vida dos seus seguidores, sabemos que o corpo humano é uma “máquina” demasiado complexa e com características únicas. Como tal, aplicar forças/resistências nas estruturas musculares e articulares é algo que requer conhecimento e responsabilidade.
Eventualmente, menos saudável que fazer atividade física sem supervisão, será não o fazer de todo. Por outro lado, tendo em conta as elevadas taxas de cancelamentos (65%) dos clientes dos ginásios (Barómetro do Fitness, 2018) (onde existe uma elevada preocupação com a sua retenção), no contexto online, e sem supervisão, se o utilizador não tiver uma experiência positiva e segura, poderá colocar em risco a sua adesão a programas desta natureza. Embora a investigação sobre esta temática possa ser mais aprofundada, um estudo recente de Bianchi FP e col. (2020) sugere que o índice de lesão dos praticantes de fitness aumenta quando supervisionados por pessoas não qualificadas para o fazer.
Outros estudos indicam que o índice de lesão em atividades como o HIIT tem vindo a aumentar (Rynecki ND, Siracuse BL, Ippolito JA, Beebe KS, 2019). Este tipo de atividades ocupa o segundo lugar no “FITNESS TRENDS 2020” (ACSM, 2020) permitindo a perceção de uma relação clara lesão-fitness, nos dias de hoje.
– Qual será o risco quando não há supervisão de todo?
Não pretendendo opor-me a este tipo de intervenções e uma vez que também é nossa função a promoção de um estilo de vida mais ativo, acredito que o mundo online tem muito para explorar e é, sem margem para dúvidas, uma ferramenta fundamental para chegar a diferentes públicos. No entanto, enquanto profissionais, se nos queremos diferenciar e qualificar, devemos tentar fazer mais, melhor e com o pensamento critico sempre presente. Assim, surgem novas perguntas…
De que forma posso ajudar a pessoas a treinar de forma mais segura?
– Como posso fazer melhor? De que forma posso ajudar a pessoas a treinar de forma mais segura? Como deverei comunicar afim de minimizar os riscos? Como posso selecionar as pessoas “mais aptas” para as minhas intervenções? Como posso excluir as “não aptas”?
Talvez ao refletirmos sobre estes assuntos e ao tentarmos arranjar mais e melhores soluções, a nossa classe profissional comece a ganhar força e a ser mais reconhecida. Vejamos então:
– Qual será afinal o nosso papel (Técnico de Exercício Físico)?
Segundo o código deontológico do Técnico de Exercício Físico apresentado pela APTEF, o nosso papel passa por:
- “…avaliar, planear, prescrever, controlar e acompanhar a prática de exercício físico de todos aqueles que procurem os seus serviços, com ou sem condições clínicas associadas, tendo como objetivos a SAÚDE e/ou a performance.”
- “O TEF tem que ter sempre em conta, ao exercer as suas funções expressas no ponto 1 do presente artigo, a SAÚDE de todos aqueles que o procuram, mesmo que o objetivo seja a performance.”
Partindo do princípio absoluto e irrevogável de que a promoção da saúde e bem-estar deverá estar sempre em primeira instância e, uma vez que, no contexto profissional todos temos o mesmo título, fará sentido que o nosso posicionamento seja o mesmo. Desta forma, caminharemos juntos no sentido de uma maior valorização profissional, assente no genuíno interesse pela saúde de toda a população que nos procura.
A própria investigação científica tem evoluído com o intuito de valorar o papel do exercício físico na saúde, dando-nos cada vez mais e melhores ferramentas para atuarmos na nossa profissão.
A medicina tem vindo a confirmar este caminho e os próprios profissionais da área tem prescrito o exercício físico como um “fármaco” combatente de várias doenças do foro físico e mental.
Expormos, então, os utilizadores, a este tipo de soluções, poderá pôr em risco a sua saúde e, nesse sentido, as pessoas deverão estar alertadas para os riscos que correm e a necessidade de fazerem escolhas conscientes e informadas.
Quanto a nós, técnicos de exercício físico, proponho que reflitamos sobre o nosso papel, a nossa função, o nosso real propósito. O tamanho da nossa responsabilidade terá de ser tão grande quanto o nosso valor. Por isso, e para terminar, apelo a todos os profissionais da nossa área que se “entreguem” a esta profissão uma vez que a “arma” que temos nas mãos é demasiado potente para ser usada de forma arbitrária. Juntos elevaremos a nossa profissão e, só assim…seremos mais fortes!