Esclerose Múltipla e Exercício Físico por Hugo Silva
Em 2016 estimou-se que pouco mais de 2 Milhões de pessoas tivessem Esclerose Múltipla (EM) [1], sendo a maior prevalência nos Estados Unidos da América [2] e em alguns países do Norte da Europa [3]. No entanto, estes estudos destacaram também as lacunas que ainda existem no conhecimento epidemiológico sobre esta doença.
A prevalência desta doença varia também substancialmente no género e idade, sendo a idade de início mais comum entre os 20 e os 40 anos e principalmente em mulheres [4].
Então em que consiste a Esclerose Múltipla? Antes de tudo, é uma doença neurológica, crónica e autoimune cuja origem é desconhecida.
Acredita-se que a EM envolva um mecanismo imunológico. Uma causa postulada é a infeção por um vírus latente (possivelmente um herpes-vírus humano, como o Epstein-Barr) que, quando ativado, desencadeia a resposta autoimune secundária. [5;6;8]
A maior incidência em certas famílias e presença de alótipos de HLA sugerem a suscetibilidade genética. [6] O Tabagismo também parece aumentar o risco. [7;8]
Sendo uma doença autoimune, na EM as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, o que provoca o aparecimento de áreas localizadas de desmielinização e alterações a nível cerebral e medular, principalmente ao nível da substância branca. [1]
A destruição da oligodendróglia (responsável pela formação e manutenção das bainhas de mielina), a inflamação perivascular, as alterações químicas nos constituintes lípidos e proteicos da mielina e o dano axonal [8] comprometem a transmissão dos impulsos elétricos provocando falha ou bloqueio e levando ao aparecimento da sintomatologia.
E quais são esses sintomas?
- Fadiga;[9]
- Alterações Fonoaudiológicas;
- Transtornos Visuais; [11]
- Problemas de Equilíbrio e Coordenação;
- Espasticidade; [9]
- Transtornos Cognitivos; [9; 10; 12]
- Transtornos Emocionais; [12]
- Controlo de Bexiga e Intestino.
A Fadiga (1) é um dos sintomas mais comuns e mais incapacitantes, caracteriza-se por um cansaço intenso e é mais comum quando o paciente se expõe ao calor ou a esforço físico intenso.
Alterações Fonoaudiológicas (2) são alterações ligadas à fala e deglutição tais como: fala lentificada, voz trémula, dificuldade em engolir.
Em relação ao Equilíbrio e Coordenação (4), há perdas de equilíbrio e coordenação, tremores, instabilidade a caminhar (ataxia), vertigens e náuseas, fraqueza geral que podem estar também relacionados com transtornos visuais (3).
Espasticidade (5) é a rigidez de um membro ao movimento e aqui é mais frequente nos membros inferiores. Está também associada a parestesias que comprometem a sensação tátil normal.
A perda de memória e a perda de capacidade de realização das tarefas (aumento do tempo de execução) são os transtornos cognitivos (6) mais comuns.
Naturalmente, associado a todos estes sintomas, assim como ao comprometimento do desempenho sexual, a depressão, ansiedade, transtorno bipolar e irritabilidade são também sintomas muito comuns. (7 e 8) [2]
E esta doença tem cura? Em que consiste o tratamento?
Até ao momento esta doença não tem cura e, portanto, o tratamento terá como objetivos abreviar exacerbações agudas e diminuir a frequência das mesmas, aliviar sintomatologia e postergar a deficiência, procurando que o paciente mantenha a capacidade de se mover.
O tratamento é feito à base de corticoides, imunomoduladores para prevenir as exacerbações, baclofeno [1;3] ou tiazidina para a espasticidade, gabapentina ou antidepressivos tricíclicos para a dor e cuidados de suporte [1] como o encorajamento, tranquilização e EXERCÍCIO FÍSICO.
Como já foi demonstrado por diversos estudos, a Força influencia diretamente o estado de saúde e a capacidade física de todas as pessoas.
Esta capacidade poderá ser mantida e/ou desenvolvida através do treino contra resistências ou Treino de Força (TF), no qual os participantes desafiam os seus músculos em oposição a uma resistência externa.
Os benefícios do TF são muitos e aqui destaca-se o aumento da capacidade de produzir força; adaptações estruturais e neurais; melhoria na composição corporal através da maior mobilização de Ácidos Gordos Livres e aumento da Massa Muscular, diminuição da concentração sistémica de insulina, que é um fator preponderante para a lipólise de tecido adiposo durante o exercício [14] otimização metabólica; e melhorias na capacidade aeróbia com a vantagem de promover menor sobrecarga no sistema cardio-vascular comparativamente ao treino aeróbio. [15]
No entanto, o cérebro humano funciona com o objetivo de economizar energia e por isso, se não dermos uso à massa muscular que possuímos, se não nos movermos, se não exercitarmos, vamos acabar por perder massa muscular e como consequência perder capacidade em produzir força. “Use it or lose it”.
Como será de esperar, tal trará consequências diretas para a vida das pessoas, desde a diminuição da mobilidade, equilíbrio e coordenação e mais importante, a autonomia na realização das tarefas diárias. Estas capacidades, quando perdidas, aumentam o risco de lesão, diminuem a qualidade de vida e poderão aumentar o risco de morte.
Exercício e Esclerose
A influência neuromuscular desta doença tem como consequência comum a adoção de um estilo de vida mais sedentário, risco aumentado de obesidade, osteoporose e doenças cardiovasculares e pode assim contribuir para a incapacitação progressiva e aumento nos sintomas depressivos.
Felizmente, o Técnico de Exercício Físico através do seu conhecimento na sua área de atuação poderá ser capaz de ter um papel ativo muito importante na luta contra esta ordem de acontecimentos e aumentando a qualidade de vida dos pacientes.
Como referido anteriormente, o papel do Exercício Físico estará relacionado com a redução da sintomatologia e de cuidado de suporte. No entanto, o exercício nem sempre foi indicado para pessoas com EM pois acreditava-se que devido ao aumento de temperatura, a fadiga aumentasse também e os sintomas fossem exacerbados. Com o avanço das investigações esta ideia foi sendo dissolvida e o exercício passou mesmo a ser uma recomendação para os pacientes. Algumas estratégias para o controle da temperatura em situação de exercício incluem: [13]
- Salas climatizadas;
- Preferência por períodos iniciais da manhã ou final de tarde sendo a manhã preferencial pois é quando se sente menos os efeitos da fadiga;
- Manutenção da hidratação;
- Aplicação de um pano húmido quando necessário sobre o pescoço ou punho.
- Exercício em contexto aquático.
Alterações na força muscular
A falha na condução dos impulsos nervosos através da bainha de mielina leva a diminuição da taxa de ativação das unidades motoras e ao seu recrutamento inadequado. [16,17] Outros estudos têm ainda sugerido que parte da perda de força em pacientes com EM seja consequência de desuso porque, de facto, estas pessoas apresentam baixos níveis de atividade física [18,19] e, por vezes, ficam longos períodos no leito durante a fase da exacerbação da doença.
O principal impacto da diminuição na força muscular em pacientes com EM é ao nível dos membros inferiores estando diretamente relacionado com a locomoção e a realização de atividades diárias.
Alguns estudos demonstram que através do Treino de Força, seja em máquinas, com pesos livres ou mesmo apenas com a resistência da gravidade, os pacientes apresentam ganhos de força e melhorias no padrão da locomoção. [20]
Fadiga
Para 50-60% dos pacientes, a fadiga é considerada o sintoma mais importante e a principal razão da incapacidade para o trabalho e isolamento social. A sua origem é ainda desconhecida e é explicada multifatorialmente. Vários autores indicaram nos seus estudos a melhoria dos níveis de força e do condicionamento aeróbio como fatores importantes para a redução da fadiga. Segundo esses autores, ganhos promoveram a redução dos esforços para execução das tarefas diárias e consequentemente reduziram a fadiga dos participantes. Essa linha de pensamento é corroborada por estudos anteriores que sugeriram parte da fadiga como decorrente do destreino e, assim, reversível por meio da prática de exercício.
Espasticidade
Espasticidade refere-se a hipertonia muscular causada pela desinibição dos reflexos da medula espinhal e subsequente hiperexcitabilidade do reflexo de estiramento velocidade-dependente. Na EM a espasticidade tende a aumentar com a duração da doença e com o aumento da incapacidade.
As intervenções não-farmacológicas são importantes nos cuidados a pessoas com espasticidade, incluindo rotinas de exercício físico e relaxamento para manutenção da amplitude de movimento. Pessoas com níveis elevados de espasticidade necessitam frequentemente de orientações de posturas adequadas e uso de órteses.
Grupos musculares espásticos encontram-se geralmente com reduzida capacidade de produção de força, sendo importante o seu fortalecimento. Nesse sentido propõe-se o início desse trabalho apenas quando houver controlo do movimento na região espástica.
Entretanto, se houver controlo total dos movimentos numa extremidade ou espasticidade mínima, exercícios resistidos são indicados. A atividade deve ser interrompida ao sinal de qualquer prejuízo na função motora.
Atividades em meio aquático são particularmente indicadas para pessoas com EM. A flutuabilidade e viscosidade, características do meio líquido reduzem o impacto da gravidade e conferem maior equilíbrio e amplitude de movimento a músculos muito fracos para desempenhar a mesma tarefa em terra.
Resta dizer que a influência direta de exercícios físicos na espasticidade tem sido pouco explorada nos programas com exercícios para pessoas com EM.
CONCLUSÃO
A progressão desta doença é imprevisível, podendo haver remissões, recidivas, exacerbações mais ou menos agudas, no entanto, o conhecimento sobre esta doença e sobre a prática de exercício neste contexto é produtiva para toda a gente. Para os Médicos, de forma a conseguirem controlar as variáveis de todo o processo de acompanhamento do paciente; para os próprios Pacientes, que obtém a possibilidade de fazer algo que lhes permite sentir melhor e aumentarem a sua qualidade de vida; e para os Técnicos de Exercício Físico que, ao sermos responsáveis por todas as questões inerentes ao Treino, devemos estar aptos a conduzi-lo e adaptá-lo às idiossincrasias destas pessoas e às características desta doença (e de outras) de forma a transmitir segurança, bem-estar e a promover um estilo de vida mais “inclusivo” na nossa sociedade.
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