Correr com dor por Samuel Corredoura
Sem sombra de dúvida que a corrida assume um papel importante na promoção de hábitos de vida saudáveis, não só pela sua difusão a nível mundial, como também pelo baixo dispêndio financeiro para quem a pratica de forma lúdica e recreativa, ou até mesmo competitiva. Para os praticantes regulares, é comum que apareçam algumas dores, quer musculares, quer articulares, com durações variadas, podendo prolongar-se no tempo indeterminadamente. Caracterizadas como “picadas”, “esticões”, “músculos presos”, “moinhas”, “rigidez”, etc, estes episódios são entendidos pelo sistema nervoso central como uma ameaça.
Segundo Wallwork et al. (2015), atualmente sabe-se que, estando intimamente unidos, embora sem diferenciação hierárquica, a dor gera alteração do controlo motor e consequentemente das habilidades requeridas pela atividade desportiva. Já em 1980, Winter demonstrou que quando uma articulação não contribui adequadamente na produção de força, as duas articulações mais próximas incrementarão a sua participação para compensar a articulação mais débil. Temos como exemplo um estudo de Castanharo et al. (2011), que demonstrou haver em situações de reconstrução do LCA alteração em 30% da potência da extremidade inferior, do joelho para a anca, no membro operado.
A nitidez, ou qualidade, com que cada músculo está representado no córtex motor será determinantemente influenciada e modulada pela nossa capacidade inconsciente de percecionar alterações mecânicas no mesmo que levem a um resultado de dor. Com esta modulação e entrada em modo de segurança do sistema nervoso central, terá de ser tido em conta que quanto maior o tempo em que aí permanecer, melhor seguirá fazendo essa mesma função, tornando-se mais sensível facilitando a sua relação com a dor (Moseley & Butler, 2015).
Hodges & Smeets (2015) explicam que quando, de alguma forma, a carga excede a tolerância do tecido, com um sistema nervoso sensibilizado, é criado um input nociceptivo, podendo gerar dor, lesão ou perceção de ameaça. Alterações de vários níveis no SNC ocorrerão, desencadeando alterações subtis ou mais pronunciadas no comportamento motor, gerando incongruência entre output motor e input sensorial. A curto prazo, resultará numa proteção pelo SNC da região lesada ou dolorosa, diminuição da atividade e stress, diminuição do movimento e diminuição do potencial de erro. Por outro lado, a longo prazo terá as suas consequências, como o incremento do potencial de lesão e/ou provocação nociceptiva, incremento de carga, carga invariável, diminuição da capacidade de absorção e descondicionamento. Logicamente, neste último, a carga voltará a exceder a tolerância do tecido e a resposta voltará a ser este ciclo anteriormente descrito.
O “truque” será aprender como encontrar a linha entre fazer o suficiente para que o sistema se adapte, mas não tanto que desperte o sistema de proteção. Foco na segurança e criar contextos positivos de forma a baixar o sistema de alerta (Williams et al., 2012). Qualquer exercício criado, teste realizado pelo treinador ou fisioterapeuta, a comunicação com o desportista, etc., devem estabelecer segurança para o seu cérebro. A própria fadiga deve ser considerada como um output de proteção do sistema, que de certo modo despoleta uma sensação de perigo, sendo por isso necessário dosear muito bem os seus níveis. Mais cansaço após o treino não significa que se treinou melhor, assim como mais dor muscular no sentido de “no pain, no gain” também o colocam mais longe do resultado pretendido, afastando-o de uma melhoria de performance.
O treino de força, ao alcance dos treinadores devidamente qualificados em conhecimentos de biomecânica, fisiologia neural, muscular e articular, revela-se uma ferramenta de elevada eficácia na melhoria da representação cerebral dos músculos envolvidos na corrida. Cabe a estes agentes avaliar a individualidade de cada atleta, sabendo identificar as suas particularidades. Reconhecer assimetrias de força e de amplitudes voluntarias de movimento, criar exercícios adequados a estas mesmas particularidades, com perfis de resistência ajustados, respeitando os níveis de força que o atleta tem à partida, potenciando assim as suas capacidades de forma segura.
Desta forma, com as suas capacidades devidamente potenciadas em contextos positivos de estímulo e segurança, o atleta poderá experienciar novamente o prazer da sua corrida sem dor.