A cartilagem, osteoartrose e influência do exercício resistido
Introdução
A fisiologia articular é uma área de estudo, que contempla o conhecimento sobre a cartilagem, provavelmente imprescindível para qualquer profissional do exercício. A fisiologia articular representa as possibilidades e limitações de mobilidade. O potencial movimento de um segmento é determinado pelas características específicas da estrutura e função das articulações. (Hamill e Knutzen). As diversas articulações do corpo funcionam de forma quase previsível entre si. O conhecimento da estrutura e forma da articulação permite nos perceber qual ou quais as possibilidades de movimento e de estimulação mais congruentes e apropriadas.
Das características anatómicas e fisiológicas da estrutura articular, destaco a sua superfície de baixíssima fricção, e a sua função de proteção das estruturas ósseas. Realço a cartilagem, o líquido sinovial, assim como o seu prematuro desgaste, designado por osteoartrose.
Perante o precoce desgaste osteoarticular, salientarei a influência que poderá ter o exercício, especificamente aplicado, como o verdadeiro estímulo na prevenção e controlo do processo degenerativo.
A cartilagem articular
A cartilagem articular ou cartilagem hialina é um tecido rico em colagénio que cobre o topo das superfícies ósseas, portanto evita o contato osso com osso. O seu principal objetivo é absorver as forças e reduzir a fricção entre as superfícies. Têm sensivelmente 5% de células responsáveis pela manutenção do tecido (condrócitos). O restante conteúdo celular consiste em cerca de 95-99%, na matriz extracelular (80% de água e 20% de sólidos). Este conteúdo solido é composto por colagénio (50-75%) e proteoglicanos (15-30%). O colagénio é responsável pela excecional tolerância às forças compressivas e os proteoglicanos atraem água fazendo expandir a matriz extracelular. A tolerância deste tecido depende da agregação dos proteoglicanos e da integridade do colagénio, tornando se resistente a cargas compressivas até 6 vezes o peso corporal.
A espessura da cartilagem pode variar entre 1mm a 7mm situada nos extremos ósseos. Não possui membrana externa (pericôndrio), oferece uma superfície de baixíssima fricção, não é inervada nem vascularizada, por isso têm comprometido o mecanismo de reparação.
A cartilagem possui ainda um fluido, chamado líquido sinovial, preenche toda a cavidade articular. Têm como funções lubrificar e nutrir a cartilagem, assim como oferecer estabilidade articular. A sua viscosidade permite resistir às forças de cisalhamento que naturalmente invadem a articulação, diminuindo assim, ainda mais, a fricção entre as superfícies de contacto (Levangie e Norkin, 2011).
A cartilagem articular possui essencialmente 3 camadas:
– A primeira camada, a mais superficial, com cerca de 20% da espessura do tecido, têm como funções a diminuição da fricção e da resistência provocada pelas forças de cisalhamento sobre a superfície, permite 50 vezes menos fricção que aço com gelo, o colagénio presente é do tipo I e apresenta uma força tênsil idêntica á do aço;
– A segunda camada (intermédia) têm cerca de 50% da espessura do tecido e têm a mais elevada concentração de aglomerados proteicos (agrecan) e têm como funções hidratar o interior da cartilagem e oferecer elevada resiliência às forças compressivas;
– A última camada (mais profunda) contribui para cerca de 30% da espessura do tecido, rica em fibra de colagénio, perpendicularmente dispostas e está ancorada ao osso. (Levangie e Norkin, 2011)
O mecanismo de nutrição e reparação da cartilagem é realizado por um processo mecânico chamado imbibição. Não requer consumo de energia, pois a passagem dos nutrientes entre o interior da cartilagem e a cavidade articular, é realizada como se de uma esponja se tratasse. Ao sofrer forças compressivas o líquido sai de dentro do tecido, para a cavidade articular onde a pressão é menor. Mas assim que a cartilagem é descomprimida, a pressão dentro da cartilagem fica menor, e o líquido da cavidade é difundido para dentro da cartilagem, naturalmente transportando nutrientes necessários para a sua manutenção e reparação.
É de evidenciar que para manter a cartilagem saudável é necessário a presença de forças compressivas, alternando com momentos de descompressão, mas gostaria de chamar a atenção do leitor, que, “…a ausência de forças compressivas na superfície articular reduz o movimento do fluido, podendo existir alterações degenerativas após imobilização prolongada ou por excesso de forças. (Levangie e Norkin, 2005). Sendo assim podemos considerar que o exercício em doses especificamente aplicadas é fundamental para o processo mecânico de imbibição e consequentemente para a regeneração e reparação da cartilagem. Mas o excesso de exercício (dose), assim como a imobilização irá provocar um processo de degeneração e nada benéfico para a saúde articular.
Osteoartrose (OA)
A osteoartrose é caracterizada por uma doença articular degenerativa que afeta a cartilagem, as alterações são progressivas, tanto no processo de reparação como de lubrificação, devido á diminuição do conteúdo de colagénio e proteoglicanos. Esta alteração nos processos regenerativos leva á diminuição progressiva da cartilagem articular, consequentemente alterações ósseas (osteófitos) e inflamação na membrana interna da cápsula articular, laxidão dos ligamentos, instabilidade articular e fraqueza muscular (Roos, E. 2010; Camero-Espinhosa, 2016; Felson, 2012; Zahra, A. 2013).
A OA, é considerada como uma das principais causas de dor e incapacidade articular, com maior prevalência na articulação do joelho, anca e mão. Num estudo sobre a prevalência de anormalidades nos joelhos detetadas por ressonância magnética em adultos sem osteoartrite do joelho de realizado em Framingham (2012), nos Estados Unidos, para determinar a prevalência de lesões estruturais associadas à osteoartrite e sua relação com idade, sexo e obesidade, demostrou evidências que um grande número da população acima de 50 anos, apresenta degeneração articular no joelho mesmo sem dor e sem indícios de degeneração registados em exame radiográfico. Os resultados desta pesquisa numa amostra de 710 pessoas, demonstram que: 74% das pessoas acima de 50 anos apresentam alterações estruturais que poderiam influenciar permanentemente a amplitude de movimento; 69% têm alterações estruturais que podem influenciar a tolerância à força; e 88% das pessoas sem queixas de dor tiveram pelo menos uma das patologias citadas. A ausência de dor não significa ausência de possíveis fatores que requerem considerações especiais.
Esta condição patológica é responsável pela perda de qualidade de vida, e uma das causas de limitação ortopédica e dependência do idoso, principalmente devido à dor e á perda de funcionalidade nas atividades básicas do dia a dia, como caminhar ou subir escadas (Felson, 2000).
As principais causas da osteoartrose são multifatoriais e a evidência científica ainda não conseguiu encontrar a verdadeira causa da razão da degeneração precoce da cartilagem. A literatura científica, destaca 2 fatores responsáveis pelo aparecimento da osteoartrose, fatores não mecânicos e fatores mecânicos. Dos fatores não mecânicos, realça maior incidência com o aumento da idade, obesidade, inflamação e no sexo feminino. Especialmente a inflamação e a subsequente sinovite tornaram-se uma área intensamente estudada na patogénese da OA. Embora a OA seja geralmente definida como uma doença não inflamatória, há evidências de que reações inflamatórias mediadas pela liberação de citocinas pró inflamatórias que resultam em degradação da cartilagem, reparo tecidual prejudicado e atuam como um gatilho para OA sintomática, (C. Egloff, 2014). No que diz respeito aos fatores mecânicos, destacam se a fraqueza muscular e desequilíbrios musculares, como fatores de risco independentes para o desenvolvimento de OA. Segundo Dr. David Felson (2013), num artigo publicado na Osteoarthritis Cartilage, na qual dá a sua opinião sobre a osteoartrose, onde afirma que (…a osteoartrose é quase sempre causada pelo aumento de forças físicas, causando dano na articulação…). O mesmo autor defende ainda a sobrecarga mecânica, como principal causa da osteoartrose, que podem ter origem nas alterações na estrutura anatómica, e no excesso de forças articulares. (C. Egloff, 2014, Roos, 2007, Oiestad, 2015).
Alterações na estrutura anatómica – podem ser congénitas ou adquiridas, promovem alteração da incidência de forças articulares, faz com que haja maior sobrecarga numa determinada zona da articulação/superfície de contacto. Ex: alteração congénita – joelho varo/valgo. Ex: alteração adquirida – rotura ou remoção do menisco.
Excesso de forças articulares – quando articulação é sujeita a uma magnitude de forças intolerável, podendo ser por causa de uma exposição crónica a movimentos repetitivos ou excesso de carga numa articulação. Ex: osteoartrose nos dedos nos colhedores de algodão ou joelhos e ancas nos mineiros (Felson, 2013)
Fraqueza e desequilíbrio muscular – A contração muscular desempenha um papel fundamental na estabilidade funcional articular, providencia uma melhor absorção, controlo e gestão das forças articulares, permitindo uma distribuição equilibrada das forças pelas superfícies articulares (Roos 2010; Loureiro 2013).
Sabemos também que os níveis de força muscular otimizados, estão relacionados a uma redução da incidência da osteoartrose e, inclusive elevados níveis de força, inibe o aparecimento dos sintomas da OA, quando esta condição já está presente (Bijlsma, 2013).
A diminuição da força muscular, causa instabilidade na articulação devido à fraqueza muscular, como consequência existirá um excesso de forças articulares. Para além disso, se a instabilidade for também passiva (ligamentos ou cápsula), é muito provável que a deslocação do eixo articular, origine alteração na distribuição de forças nas superfícies articulares.
Influência do exercício na prevenção e controlo da osteoartrose
Pelo que foi exposto anteriormente, creio que podemos sugerir que o exercício, poderá ter um papel determinante no controlo, prevenção e até pode ser um importante complemento para o tratamento da OA.
O verdadeiro foco do profissional do exercício perante um cliente ou paciente com OA, deverá ser o de construir cenários específicos de estimulação muscular, que permita reverter o processo de fraqueza muscular, de forma a promover uma melhor estabilidade articular, uma melhor gestão e tolerância neuro-musculo-articular às forças a que o corpo é sujeito nas atividades diárias.
A literatura científica demostra evidências dos benefícios terapêuticos do exercício resistido, na melhoria dos sintomas da OA, nomeadamente na redução da dor e melhoria da função motora (Moseng, 2017; Fransen, 2014, 2015; ACSM 2014, Eustáquio e Neto, 2022).
Várias revisões sistemáticas apresentam as seguintes recomendações no que diz respeito ao treino com resistências ou treino de musculação:
Duração: 20 a 90 minutos;
Frequência: 3 a 5 dias semana
Exercício resistido: 8 a 12 repetições até induzir fadiga muscular
Séries: 2 a 4 séries;
Intensidade: 40% a 80% 1 RM;
Frequência: 3 a 5 dias por semana.
Da análise da literatura científica foi evidente que as intervenções de fortalecimento muscular, promoveram melhorias nos indivíduos com OA, no entanto não posso deixar de referir que há uma falta de atenção aos princípios de treino, e uma evidente falta de especificidade na construção e monitorização do exercício, nomeadamente falta de referência a variáveis mecânicas como influências inerciais, velocidade de execução, amplitude articular contrátil disponível, tipo de resistência e intenção colocada pelo paciente no exercício…
Perante a falta de especificidade e priorização, evidente na literatura científica, irei deixar aqui algumas recomendações, que na minha opinião promovem, mais eficiência, segurança e contextos de estimulação mais apropriados, na construção e monitorização do exercício.
Variável | Recomendações | Razões |
Disponibilidade e Tolerância | Estímulo ajustado e dentro o limiar de stress (tolerância dos tecidos) se necessário aproximar a ponto de aplicação da força do eixo articular | Estímulo fora dos limiares de stress o exercício causa mais danos do que benefícios. |
Amplitude Muscular Contrátil | Capacidade contrátil desde o max. Encurtamento disponível até ao max. Alongamento disponível | Diminuir o stress articular e ficar mais dependente da função muscular |
Amplitude Articular Disponível | Dentro de amplitudes articulares disponíveis, sem dor ou desconforto | Tecido não contrátil – não ajustável). |
Aceleração/Desaceleração | Lenta ou muito lenta e controlado em cada repetição e ao longo de toda amplitude | Diminui os efeitos inerciais, menor magnitude de forças articulares, menor risco de lesão |
Foco/Atenção | Atenção plena e concentração na contração e movimento | Melhor eficiência e qualidade contrátil. |
Intenção | Qual a direção da força resultante que cliente/paciente faz na execução do exercício | Diminuir magnitude de forças em articulações fragilizadas |
Esforço/Séries | 1 ou 2 séries | 1 Série até falha concêntrica ou se não for tolerável, 2 series com o mínimo de descanso entre séries |
Duração/Repetições | 8-12 reps | |
Tipo de resistência | Máquinas guiadas | Oferecem possibilidade de apoio e restrição, possibilita gerar mais força, desafio localizado no tecido muscular |
Frequência | 1 ou 2 x por semana | Evidência científica mostra que a generalidade dos músculos melhora a sua funcionalidade, força e dor |
Bibliografia:
- ACSM (2014). ACSM’s Guidelines for Exercise Testing and Prescription; 9th edition. American College of Sports Medicine. Lippincott Williams & Wilkins.
- Ali Guermazi., , Jingbo Niu., Daichi Hayashi., Frank W Roemer., Martin Englund., Tuhina Neogi., Piran Aliabadi., Christine E McLennan., David T Felson (2012). Prevalence of abnormalities in knees detected by MRI in adults without knee osteoarthritis: population based observational study (Framingham Osteoarthritis Study).
- Camarero-Espinosa, S., Rothen-Rutishauser, B., Foster, E., Weder, C. (2016). Articular cartilage: from formation to tissue engineering. Biomater. Sci.
Correa, D., Lietman, S. (2016). Articular cartilage repair: current needs, methods and research directions. Seminars in Cell & Development Biology
- Elsevier. Egloff, C., Sawatsky, A., Leonard, T., Hart, D., Valderrabano, V., Herzog, W. (2014). Effect of muscle weakness and joint inflammation on the onset and progression of osteoarthritis in the rabbit knee. Osteoarthritis and Cartilage
Felson, D. (2013). Osteoarthritis as a disease of mechanics. Osteoarthritis Cartilage. Author MAnuscript. Jan 2013. NIH.
- Fisher, J., Steele, J., Bruce-Low, S., Smith, D. (2011). Evidence-based resistance training recommendations. Medicina Sportiva,
- Fisher, J., Steele, J., Brzycki, M., DeSimone, B. (2014). Primum non nocere: A commentary on avoidance injuries and safe resistance training techniques. Journal of Trainology.
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- Levangie, P., Norkin, C. (2011). Joint Structure and Function. F. A. Davis Company.
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- Moseng, T., Dagfinrud, H., Smedslund, G., Østeras, N. (2017). The importance of dose in land-based supervised exercise for people with hip osteoarthritis. A systematic review and meta-analysis. Osteoarthritis and Cartilage. July 2017
- Purvis, Thomas Clark., Mariane Franceschi Malucelli. (2017) A evolução da prescrição clínica do exercício: a identidade da fisioterapia — Curitiba : Edição do Autor, 2017.
- Roos, E., Herzog, W., Block, J., Bennell, K. (2010). Muscle weakness, afferent sensory dysfunction and exercise in knee osteoarthritis. Nature Reviews. Nat. Rev. Rheumatol. 7 Nov. 2010.